No contexto jurídico brasileiro, a filiação é tradicionalmente compreendida como um vínculo biológico, que liga um indivíduo aos seus pais por meio da descendência genética. No entanto, a legislação e a jurisprudência brasileira têm ampliado esse conceito, reconhecendo a importância dos laços afetivos na constituição da identidade familiar. Nesse cenário, a socioafetividade vai além da biologia, colocando o afeto, a convivência e o reconhecimento mútuo como pilares fundamentais para o estabelecimento de vínculos parentais.
A filiação socioafetiva ocorre quando uma pessoa, independentemente da relação biológica, cria, educa e assume a responsabilidade de cuidar de uma criança ou adolescente, com base em uma relação afetiva genuína. Esse vínculo é reconhecido pelo direito, podendo ser formalizado como uma relação de paternidade ou maternidade, ainda que não haja qualquer ligação genética entre as partes. Isso é especialmente relevante quando consideramos famílias compostas por padrastos, madrastas, avós ou outros membros da rede familiar, que, ao longo do tempo, estabelecem uma relação de cuidado e afeto.
A Justiça de Joinville proferiu uma decisão importante sobre a filiação socioafetiva. A decisão reconheceu o direito de uma mulher registrar sua avó biológica como sua mãe, destacando a relação de cuidado e carinho que existia entre elas. Embora a autora tivesse uma mãe biológica, a Justiça entendeu que a conexão emocional e o vínculo de afeto com a avó foram determinantes na constituição de sua identidade familiar, evidenciando a importância do vínculo socioafetivo.
Outro marco importante para o reconhecimento da filiação socioafetiva foi a decisão do STJ, que reafirmou a possibilidade de reconhecer a filiação socioafetiva entre avós e netos, mesmo quando os netos são maiores de idade. A ministra Nancy Andrighi, relatora do caso, destacou que a socioafetividade não se confunde com adoção, uma vez que não exige a ruptura dos vínculos biológicos, mas sim a criação de um vínculo afetivo profundo, capaz de estabelecer uma parentalidade genuína. Essa decisão reforça a ideia da multiparentalidade, permitindo que os registros civis reflitam não apenas os pais biológicos, mas também aqueles que desempenham funções parentais a partir da afetividade.
Em outra decisão significativa, o STJ reconheceu a possibilidade de vínculo socioafetivo entre irmãos, mesmo quando não há uma relação biológica entre eles, mas apenas um vínculo de criação. Evidenciando que a filiação socioafetiva não se restringe ao vínculo entre pais e filhos, podendo se estender a outras relações familiares, desde que fundamentada na convivência e no afeto mútuo.
É importante destacar que, para o reconhecimento da filiação socioafetiva, a convivência e o afeto devem ser recíprocos e duradouros. O tempo, o carinho, e a construção de uma relação de confiança são essenciais para que o vínculo seja reconhecido legalmente. O reconhecimento de uma mãe ou pai socioafetivo não depende de um vínculo biológico, mas do vínculo de cuidado e amor construído ao longo da convivência.
Ademais, a filiação socioafetiva também pode ser reconhecida post mortem, ou seja, mesmo após a morte de um dos envolvidos. O STJ, em decisões anteriores, reafirmou que é possível reconhecer a relação de fraternidade ou irmandade afetiva, mesmo quando uma das pessoas já tenha falecido. Reforçando a ideia de que o afeto e a convivência, elementos essenciais na constituição da filiação socioafetiva, podem transcender a vida biológica e continuar a ser reconhecidos juridicamente.
Artigo redigido por Dra Letícia Karoline de Oliveira
Advogada de Família e Sucessões
OAB/SC 71.550